quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Cachaçogastronomia: a arte de combinar Cachaças e Comidas

Grande quantidade de pratos preenche cardápios e livros de receitas da tradicional e, ao mesmo tempo, inovadora cozinha brasileira. Extensas também são as cartas de cachaças e catálogos à disposição dos apreciadores da mais brasileira das bebidas.

Embora o tema “Harmonização Cachaça e Comida” ainda seja praticamente desconhecido, “Cachacistas” (da cachaça) e Chefs têm obtido excelentes resultados com riquíssimas e inesquecíveis experiências “cachaçogastronômicas”.

É visível como, nos últimos cinco anos, o interesse pela apreciação da cachaça, na sua forma pura, vem crescendo entre os brasileiros e também no exterior. Tem sido cada vez mais comum se encontrar, em restaurantes, bares e cachaçarias, elaboradas cartas de cachaças que, além de apresentar uma variada oferta, dentre as cerca de 3.000 marcas ativas e disponíveis, ainda procura descrever os principais atributos de cada cachaça.

Por outro lado, a cozinha brasileira, que é o resultado de miscigenações das culturas indígena, africana e portuguesa, acrescidas, ao longo do tempo, de influências européias, latinas e asiáticas, vem apresentando constante inovação, sendo uma das mais ricas e apreciadas do mundo.

Diante desses dois universos, de elevada complexidade de cores, sabores e aromas, a tarefa de harmonizar Cachaça e Comida não é nada trivial. Embora se saiba que não há casamento perfeito, combinação única ou mesmo regras fixas, é importante observar as características de uma cachaça e os ingredientes de um prato, para que a comida enalteça as qualidades da bebida, que por sua vez deixa o prato mais saboroso.

O objetivo da “Cachaçogastronomia”, ou seja, da “Harmonização Cachaça-Comida”, não é estabelecer regras e diretrizes inflexíveis e cartesianas, mas sim definir alguns princípios de combinações de sabores e atributos para que sejam exploradas, ao máximo, as possibilidades de apreciação da bebida e das iguarias, potencializando os valores de cada um. No final, o que se busca é que o par Cachaça-Comida, por meio de equilíbrio, harmonia e realce, proporcione, antes de tudo, prazer. O equilíbrio refere-se ao peso da comida versus o corpo da bebida, a harmonia trata das sensações na comida versus as sensações na bebida e o realce está relacionado com a melhoria simultânea do gosto da comida e da bebida.

Antes de se estabelecer algumas regras, é importante notar que cada prato e cada cachaça se destaca por seus sabores básicos, seus componentes e suas texturas, que são percebidos e identificados pela língua, faringe e palato, e que a harmonização pode se dar pela semelhança de atributos, por contrastes ou ainda por certas afinidades tradicionais já consagradas.

As comidas são encontradas, na prática, sob a forma de produtos alimentícios. Devidamente preparados, eles formam pratos, que devem ser apetitosos, digeríveis, nutritivos e capazes de saciar a fome. Com relação ao seu peso, os pratos podem ser leves, de médio peso ou pesados. As sensações despertadas pelos pratos são o nível do sabor, a condimentação, a gordurosidade, a suculência e a untuosidade.

As cachaças, por sua vez, são uma solução de álcool etílico em água, contendo outras substâncias, como ácidos, ésteres, taninos e outros congêneres, que lhes dão cor, aroma, gostos e sensações táteis. Com relação ao peso, as cachaças podem ser leves, de bom corpo ou encorpadas. As sensações percebidas nas cachaças, que estão relacionadas com o processo produtivo, de envelhecimento e do serviço, são: a intensidade olfativa, a maciez, a calidez, a acidez, a adstringência e a temperatura.
Conhecendo-se portanto, de certa forma, os atributos da comida e da cachaça, pretende-se atingir uma situação de harmonia quando as estruturas se equilibram, as sensações se ajustam e os dois se realçam mutuamente: o prato enriquece a cachaça, cobrindo carências aromáticas e gustativas, e os atributos sensoriais da cachaça exaltam as qualidades da comida. Quando esta situação se concretiza, o prazer gustativo será máximo, caracterizando que o conjunto Cachaça-Comida está harmonizado.

Em meio de tantas variáveis, pode-se arriscar a estabelecer algumas poucas regras que garantam que a cachaça e a comida tenham as suas virtudes mutuamente realçadas. Antes porém de descrever as regras, é importante quebrar o paradigma de que a cachaça só deve ser tomada como aperitivo, para abrir o apetite: “a cachaça, apesar de ter teor alcoólico que varia de 38% a 48% Vol., pode acompanhar todo o curso de uma refeição, desde o aperitivo, passando pelas entradas, primeiro prato, prato principal e sobremesa, até o digestivo, com café ou chás”.

A primeira regra refere-se ao EQUILÍBRIO, ou seja, Peso da Comida versus Corpo da Bebida: uma comida leve pede uma cachaça leve, com baixo teor alcoólico, e uma comida pesada exige uma cachaça encorpada, de elevado teor alcoólico. O serviço será sempre do prato mais leve para o pesado e da cachaça mais leve para a mais encorpada.

A segunda regra trata da HARMONIA, ou seja, da afinidade das sensações: os níveis de sabor da comida harmonizam com a maciez e doçura da cachaça; comidas condimentadas requerem cachaças aromáticas; pratos gordurosos exigem cachaças mais ácidas; comidas suculentas pedem cachaças adstringentes, com perceptíveis notas de madeira; pratos untuosos requerem cachaças encorpadas.
A terceira regra refere-se ao REALCE, ou seja, às sinergias das sensações que respeitam combinações conceituais, clássicas, naturais, regionais, sazonais e experimentais. Vale a pena salientar que as harmonizações clássicas regionais, frutos de anos de experimentações, são combinações consagradas que não podem ser desprezadas.

Aplicando-se as regras acima descritas, pode-se estabelecer, para o curso de uma refeição completa, a seguinte sequência orientativa:


  • Aperitivos: Caldinhos, ostras ao limão, canapés de salmão e torresmo frito harmonizam com cachaça branca, leve, ligeiramente ácida e resfriada. Caipirinha ou batidas de frutas poderão ser servidas nessa fase da refeição.
  • Entradas: Saladas, vinagrete de frutos do mar, consomes e sopas combinam com cachaças brancas, de médio corpo e com média acidez, levemente resfriadas.
  • Primeiro prato: Peixe, camarão, lagostas, risotos, bacalhau e aves harmonizam com cachaças brancas mais encorpadas e de baixa acidez, servidas na temperatura ambiente.
  • Prato principal: Carnes vermelhas, caças de pena, caças de pêlo, assados, caldeiradas, cozido e feijoada combinam com cachaças envelhecidas, aromáticas, tânicas e de corpo leve, servidas na temperatura ambiente.
  • Sobremesas: Doces, bolos, tortas, sorvetes, salada de frutas, queijos e frutas harmonizam com cachaças envelhecidas, frutadas e de médio corpo, servidas na temperatura ambiente.
  • Digestivos: Café, chás e charutos combinam com cachaças encorpadas, envelhecidas pelo menos três anos em madeira que lhes confere fortes notas de especiarias e riqueza de aromas. Licores de cachaça poderão ser servidos.

Assim, servir cachaças adequadas em um cardápio faz parte da arte da mesa, não sendo algo meramente intuitivo. A técnica da harmonização consiste, portanto, no estabelecimento de uma sequência criteriosa, dentro de um processo dinâmico, em que cada dupla cachaça-comida é influenciada pela anterior e influencia a seguinte, de tal forma que estejam sempre em harmonia, para que, o ritual à mesa proporcione prazer infinito enquanto dure.

Saúde e bom apetite!

Autor: Jairo Martins da Silva - São Paulo, 09.01.2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário