Desde a sua origem no litoral de São Paulo em meados de 1532 até o recente reconhecimento internacional como destilado tipicamente brasileiro, a cachaça passa por estigmas e preconceitos que a classificam injustamente como uma bebida inferior.
O senso comum que promove sua desvalorização é motivado pela falta de informação, pela presença de cachaças de baixa qualidade no mercado e por conflitos históricos e culturais de um Brasil Colônia que sempre teve sua produção de aguardente marginalizada.
Em 2010, lançamos o site Mapa da Cachaça com o objetivo de ser uma fonte de informação para representar a cachaça como um destilado de elevada qualidade sensorial e importante patrimônio cultural brasileiro. Uma inspiração foi o livro Vinho & Guerra – uma abordagem da segunda Guerra Mundial pela perspectiva dos produtores artesanais de vinho na França. Os autores conseguiram apresentar a cultura francesa e esse importante período da história mundial escrevendo sobre os valores e tradições ligados a uma atividade tão próxima do povo francês. Como pesquisadores e brasileiros buscando conhecer mais sobre o nosso país nos perguntávamos: será que conseguimos fazer o mesmo ao falarmos sobre cachaça?
Depois de quase três anos de pesquisas, produção de conteúdo e conhecendo muito produtor de cachaça, entendemos que não podemos falar de cachaça sem falar de Brasil – a bebida está presente em diversas manifestações próprias do país. A cachaça acompanhou ciclos econômicos, foi símbolo de movimentos inconfidentes, influenciou a criação de tradições regionais, trouxe o nosso humor jocoso em seus milhares de rótulos e diversificou sua produção com a expansão das fronteiras brasileiras – hoje ela é produzida em praticamente todos os Estados federativos.
Com o nosso envolvimento no tema, fomos também conhecendo os atributos de aromas e sabores de uma boa caninha. Se destilados mais conceituados são reconhecidos por passarem por madeira, a cachaça feita com cuidado é uma bebida tão boa que pode até dispensar o envelhecimento em barris e dornas. Agora, se formos usar as mais de 20 madeiras nativas para reter uma branquinha a complexidade sensorial aumenta consideravelmente. Diversos estudos realizados na USP, UNESP, UFRJ, Universidade de Lavras e outros importantes centros de pesquisa analisaram os componentes químicos da cachaça atribuindo mais de 30 descritores sensoriais para a pinguinha. Não se estranhe se encontrar uma cachaça com perfume de flor de laranjeira e outra com toques de especiarias que lembram cravo.
Como nas outras bebidas, as propriedades sensoriais são definidas durante diferentes etapas do processo de produção. As condições climáticas, a variedade de cana-de-açúcar, a levedura usada durante o processo de fermentação, a destilação em coluna de inox ou alambique de cobre, o tipo de madeira usado para armazenar ou envelhecer o destilado são algumas das variáveis que definem a receita de cada produtor. Será que a cachaça produzida na Serra Gaúcha tem características que a classificam e diferem das cachaças produzidas no Norte de Minas Gerais? Assim como o uísque e o vinho poderíamos definir um terroir para a cachaça?
A complexidade sensorial da cachaça e a identificação de uma cultura de produção em algumas regiões, como o uso de leveduras francesas no Rio Grande do Sul e os segredos para o envelhecimento em bálsamo aplicados em Salinas, nos fazem crer que podemos mapear e descrever os principais pólos de produção da aguardente.
No Mapa da Cachaça não temos a pretensão de encontrar todas as respostas para as perguntas aqui levantadas – acreditamos que elas surgirão ao longo de muita pesquisa e com o envolvimento de especialistas, produtores, órgãos governamentais, acadêmicos e apreciadores da bebida. Mas durante a jornada de descobrimento, queremos mostrar que a cachaça é um destilado de qualidade e que o produtor ousado, aquele que busca criar uma cachaça diferenciada e de excelente qualidade, merece ser valorizado. Esse movimento se torna importante porque, infelizmente, estamos num mercado que os bons produtores nem sempre encontram o espaço de destaque que merecem.
Quando conseguirmos mostrar a riqueza histórica, cultural e sensorial da cachaça estaremos contribuindo para colocar o destilado brasileiro no seu devido lugar, ao lado dos outros grandes destilados do mundo – mas só conseguiremos fazer isso se formos representados pelos bons produtores de cachaça – eles são fundamentais e merecem ser valorizados.
21 de outubro de 2013 por Felipe Jannuzzi
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