sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

EM NOME DA QUALIDADE DA CACHAÇA

Artigo publicado na Revista ENGARRAFADOR MODERNO, Jan/Fev-1997
Páginas 68 a 73
Fernando Valadares Novaes - Ex-Professor Doutor - Departamento de Ciências e 
Tecnologia Agroindustrial - ESALQ
Universidade de São Paulo

Após ter emitido minha opinião acerca da qualidade da cachaça, publicada na edição nº 46 desta Revista, tenho sido cobrado por pessoas ligadas à produção dessa bebida acerca do que considero, afinal, cachaça de qualidade e como obtê-la.

Naquela oportunidade afirmei que o conceito de qualidade é muito subjetivo, razão pela qual cada produtor ou cada consumidor considera a sua marca ou aquela de sua preferência como a possuidora desse atributo. Afinal, paternidade reconhecida e preferência pessoal não se discutem. Contudo, conhecendo cada etapa de sua produção, quer a nível das pequenas como das grandes unidades produtoras, sinto-me perfeitamente à vontade para emitir aquela opinião, embora aqueles que a produzem tenham o direito de divergirem da mesma.

A pergunta lógica seria: "se a cachaça não possui qualidade, como afirmei, o que justifica então o fantástico volume produzido e, quase todo ele, consumido como bebida?" Provavelmente seria uma questão de hábito já de quatro séculos, período esse em que ela vem sendo produzida no Brasil; ainda, deve-se ligar a isso o fato de seu preço acessível à população de renda mais baixa, isto é, no estado puro, junto aos denominados "pontos de dose", os "bares de esquina". Tanto isso é verdade que sua grande concorrente é a cerveja, cujo consumo vem aumentando em detrimento da cachaça, principalmente quando vendida a preços promocionais, ocasião em que uma garrafa daquela custa menos que o valor de duas doses desta. Para essa classe de consumidor, beber cerveja dá um certo "status", o que não ocorre quando empunham aquele copinho típico da cachaça, geralmente ingerido de um único gole.

Pertencendo à classe dos destilados alcoólicos, na qual também são encontrados o whisky, o conhaque e a tequila, entre os mais conhecidos (a vodka pertence a outra classe de destilados) e, falando em qualidade, nada melhor do que traçar um paralelo entre os sistemas de produção dessas bebidas e de nossa cachaça.

O Whisky

No caso do whisky escocês, a matéria-prima que o origina é a cevada, um cereal semelhante ao trigo e ao arroz, ou seja, seus grãos, ricos em amido, são protegidos por uma casca. Colhida mecanicamente, não sofre nenhum contato com o solo e pode ser armazenada em silos, sem problemas de deterioração. Seu processamento é conduzido por maltagem (germinação dos grãos em ambiente fechado e sob condições controladas de umidade, luz e temperatura) ou por cozimento e sacarificação (transformação do amido em açúcares fermentáveis) química ou biológica. Após ajustes adequados desse material, obtém-se o mosto, o qual é enviado à fermentação alcoólica realizada pela ação de leveduras do gênero Saccharomyces, sob condições muito bem controladas de higiene, temperatura e tempo. Já a etapa seguinte consiste na destilação desse material (7% a 10% de álcool), em alambiques de cobre de grande porte, também sob condições controladas de pressão e temperatura, aquecidos indiretamente por vapor ( serpentinas situadas no interior desses aparelhos).
 
Tal destilação, contudo, é conduzida em duas etapas, a primeira das quais, a partir do mosto fermentado (vinho), obtém-se o "low-wines", um destilado de teor alcoólico situado entre 21% a 30%, oriundo do total esgotamento do álcool então presente naquele material fermentado e de volume equivalente a cerca de um terço deste. Enviado agora a outro alambique, o "low wines" será, por sua vez, também destilado fracionadamente, resultando as porções "cabeças" (75% a 80% de álcool), "coração" (65% a 70% de álcool) e "cauda" (15% a 20% de álcool). "Cabeças" e "cauda", misturadas entre si, são recicladas no vinho, sendo que o "coração", a fração nobre do processo, porém, ainda em estado bruto, constitui a base da futura bebida.

Acondicionado em barris de carvalho (capacidades próximas a 200 e 250 litros), utilizados anteriormente no envelhecimento de um tipo específico de vinho de uva na Espanha, o "coração" ali permanecerá por um tempo mínimo de três anos, período em que reações físico-químicas devidas a uma interação entre esse destilado, a madeira e o oxigênio do ar, promoverão uma transformação daquele estado bruto em um produto de sabor agradável, "redondo", "macio" e de coloração amarelo-avermelhada, denominado "malte-whisky". Ainda de teor alcoólico elevado (60% a 65%), poderá sofrer misturas de outros destilados semelhantes ou de destilados neutros, complementando-se posteriormente com água desmineralizada até a concentração alcoólica da bebida (40% a 43%). Filtração e engarrafamento completam as operações da indústria.

O Conhaque

Em se tratando do verdadeiro conhaque francês, parte-se da uva, colhida manualmente e acondicionada diretamente em recipientes, que será levada até a indústria para a extração do suco, hoje realizada por prensas mecânicas que, a seguir, será submetida à fermentação alcoólica por leveduras também do gênero Saccharomyces. O vinho resultante sofrerá então a destilação em alambique de cobre, de modo semelhante àquele empregado na obtenção do whisky. Assim é que, inicialmente, obtém-se um destilado com teor alcoólico entre 21% a 30% denominado "brouillis", pelo esgotamento total em álcool do vinho; a seguir, esse destilado é também posto a destilar, dele resultando as já referidas frações "cabeças", "coração" e "cauda".

Após passar por um período de envelhecimento em barris de carvalho, a fração "coração" (16% a 70% de álcool) poderá sofrer adição de vinhos licorosos, a fim de adequar o seu teor alcoólico ao grau de consumo (40% a 43% de álcool, em volume, a 20°C).

A Tequila

No que diz respeito à tequila mexicana, a matéria-prima é o agave (sisal), do qual são eliminadas as folhas, resultando assim o bulbo, representado pela base daquelas. Submetido a um aquecimento em fornos, dele resultarão um líquido ("mel de forno") e a fração sólida. Esta, por sua vez, após ser reduzida a pequenos pedaços pela ação de facas cortadoras, sofrerá moagem, obtendo-se um caldo que, adicionado de açúcares a fim de aumentar o teor deste, será centrifugado, dando origem aos sólidos em suspensão e ao mosto, seguindo este para a fermentação alcoólica por leveduras do gênero Saccharomyces. Quanto aos sólidos, misturados ao "mel de forno", também seguem para uma fermentação alcoólica, porém, separadamente daquela do mosto.

Completada a fermentação do mosto, o vinho resultante, juntamente com o fermento, é submetido a uma centrifugação, originando o vinho delevurado que é enviado à destilação, sendo que o fermento (creme de levedura) é submetido à diluição com água e adicionado de ácido sulfúrico (pH 2,5). Posteriormente, o fermento assim tratado é reciclado no processo, em um novo mosto, e assim sucessivamente.

O vinho centrifugado e aquele resultante da fermentação dos sólidos misturados ao "mel de forno" são enviados a uma primeira destilação, cujo destilado obtido é o "ordinário", além das "colas" (cauda). Estas são recicladas no próximo vinho a destilar, sendo que o "ordinário" é destilado em outro alambique, daí resultando um destilado bruto que, após repousado por cerca de três meses, originará a tequila tradicional. Deixado a envelhecer por tempo superior a um ano, resultará a tequila envelhecida.

A matéria-prima

Esses três tipos de destilado originaram-se de matérias-primas não queimadas e sem contato com o solo (o agave, embora no solo, não leva terra ou outra impureza qualquer ao ser colocado no veículo transportador). Não sofreram lavagem com água, e as condições de maltagem ou de cozimento e sacarificação (whisky), prensagem (conhaque), aquecimento em fornos e moagem (tequila) são conduzidas em recintos fechados e providos de total limpeza. No que se refere à fermentação alcoólica, os processos são muito bem controlados e sob rígidas condições de assepsia, principalmente no caso do whisky.

A destilação

Quanto á destilação, as três bebidas também têm em comum o modo pelo qual é conduzida, ou seja, os mostos fermentados são destilados e os produtos resultantes são, por sua vez, também destilados. Desta segunda destilação, a qual possibilita a eliminação de frações contendo grande parte dos compostos mais tóxicos (alguns aldeídos, ésteres e a maior parte dos ácidos orgânicos), resulta um destilado ainda bruto, de teor alcoólico elevado, e que necessita sofrer ainda um aprimoramento, através daquele descanso em tonéis de carvalho, seguido de misturas com outros produtos (no caso do conhaque), diluição, filtração e envasamento.

O padrão de produção

Partindo da indagação de que, se essas bebidas têm renome internacional e apresentam qualidades reconhecidas entre os seus apreciadores; ainda, embora se originem de diferentes matérias-primas, os processos de fermentação e de destilação são muito semelhantes, por que não podemos ter uma cachaça de cana dentro do mesmo padrão daquela? É lógico que isto é perfeitamente possível! Assim é que, colhendo-se a cana despalhada manualmente, enfeixados os seus colmos e carregados também manualmente nos veículos transportadores (pequenas indústrias), ou então, colhendo-a mecanicamente (sem a queima prévia), ter-se-á uma matéria-prima praticamente isenta de terra e de resíduos de adubos e agrotóxicos, dispensando-se, portanto, aquela lavagem com água de qualidade a pior possível.

Observando-se o menor espaço de tempo decorrido do corte, processar a cana em moendas adequadamente preparadas, evitando-se qualquer contaminação do caldo extraído pelo óleo de lubrificação dos seus mancais, e, no caso de duas ou mais moendas, em série, efetuar a embebição do bagaço com água de qualidade potável. Encaminhar o caldo resultante para sistema de peneira rotativa, em substituição ao absoleto e indesejável coador de tela com raspadores mecânicos(coador "cush-cush").

Já a fermentação alcoólica, que poderá empregar o fermento natural existente na própria cana, associado à quirera de milho, ou então, utilizando fermento de panificação (a maioria da espécie Saccharomyces), deverá ser conduzida em dornas situadas em local coberto e protegidas em sua parte superior com tela, ou mesmo fechadas, a fim de evitar que caiam em seu interior insetos e outras substâncias indesejáveis. Ainda, se possível, dotar esses recipientes com sistema de resfriamento, para que a temperatura do processo fermentativo não exceda os 33°C.

Finda a fermentação, aguardar um tempo adequado para que ocorra decantação máxima do fermento, ou então, trabalhar com o sistema de separação do mesmo por centrifugação (destilarias de grande porte). Os cuidados com a matéria-prima e a permanente limpeza das moendas, interior das canalizações de caldo, das bombas e das dornas de fermentação, reduzirão os riscos de contaminações significativas do processo pelas bactérias.

A recomendação: redestilar!

O vinho (mosto fermentado) resultante da fermentação (6% a 10% de álcool) deverá ser destilado em alambiques de cobre, até o total esgotamento do álcool nele existente, cujo controle será efetuado com um alcoômetro sobre o destilado, à saída da resfriadeira, até acusar 0% (zero por cento) de álcool. Esse destilado apresentará um teor alcoólico da ordem de 18% a 30% (dependerá do teor alcoólico do vinho), compreendendo um volume médio equivalente a um terço daquele vinho colocado no alambique. Seu odor será desagradável, apresentando também alguma turbidez, o que é perfeitamente natural nesta etapa do processo.

Encerrada essa destilação, o resíduo restante na caldeira do alambique será descarregado e, a seguir, recebida nova carga de vinho em seu interior, repetindo-se então todo aquele procedimento anterior. Disso resultará outro destilado semelhante ao descrito anteriormente, sendo ambos misturados. Finalmente será realizada uma terceira destilação de novo vinho naquelas mesmas condições, da qual deverá resultar mais uma carga de um terço de destilado que, por sua vez, será misturada àquelas duas outras.

Descarregado o último resíduo do alambique, este será lavado internamente com água (inclusive o interior da serpentina da resfriadeira), quando então estará pronto para receber a mistura dos três destilados anteriores. Desta nova etapa serão obtidas as frações "cabeças" (cerca de 75% do álcool), "coração" (64% a 70% de álcool) e "cauda" (15% a 20% de álcool). Como no caso daquelas outras bebidas, também aqui as frações "cabeça" e "cauda" serão recicladas no processo, ao passo que o "coração" será trabalhado através da maturação em carvalho, diluição e novamente um descanso, antes de chegar ao consumidor. Essa é a por mim denominada "cachaça bi-destilada", já encontrada no comércio.

Em se tratando de destilarias de grande porte, as quais teriam que empregar coluna contínua na destilação, esta operação deveria ser conduzida segundo o mesmo princípio empregado nos alambiques, qual seja, obtenção de um destilado com cerca de 65% de álcool em volume, do qual também seriam retiradas aquelas frações indesejáveis ("cabeças" e "cauda"). Portanto, não se trata simplesmente de se obter um destilado mais concentrado, mas também mais purificado. Desse modo, há necessidade de se modificar substancialmente a maneira de se conduzir a destilação hoje utilizada, como também criar-se um novo conceito de destilado, que será a base da futura bebida. Para tal, é preciso um novo tipo de equipamento, cujo projeto já existe, necessitando apenas a construção de um protótipo para ser submetido a testes.

Obtido tal destilado, seria ele armazenado em tonéis de madeira de grande porte e, de preferência, construídos de madeira neutra, que não transmitisse cor nem sabor ao produto, onde seria amadurecido por alguns meses, melhorando suas qualidades organolépticas. Mais tarde, sofreria diluição com água desmineralizada, seguida de novo descanso e, só então, filtrado e engarrafado. Em se desejando um produto mais nobre, referidos maturação e descanso seriam conduzidos em barris de carvalho (200 a 500 litros).

O custo de um processo adequado

Evidentemente, todos esses cuidados teriam um custo, o qual faria com que a bebida chegasse ao consumidor a preços superiores àqueles praticados atualmente. Porém, qualidade justifica esse acréscimo e, o mais importante, os benefícios para o próprio consumidor, no que diz respeito à sua saúde, são incontestáveis. Assim, ele estaria deixando de ingerir quantidades significativas de certos componentes mais tóxicos presentes na cachaça produzidas pelos métodos tradicionais, tais como hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (derivados do petróleo), carbamato de etila (agente cancerígeno), ácidos orgânicos, aldeídos e ésteres, responsáveis pela cefaléia e pelo famoso "bafo".

Outra conseqüência muito importante desse sistema de dupla destilação é o reduzidíssimo teor de cobre na cachaça, da ordem de 0,5 miligrama por litro, contra os atuais 2 a 20 miligramas geralmente encontrados. Aquele baixo valor é resultante natural do processo da bidestilação, sem necessidade do uso de filtros de resinas iônicas retentoras de cobre, às vezes empregados visando sua eliminação. Deve ser salientado que o destilado bruto ("coração") obtido pelo processo aqui preconizado, nada mais é que o referido destilado alcoólico simples, constante da legislação brasileira, a partir do qual também se pode produzir as cachaças.

Por outro lado, uma revisão total dos Padrões legais de Identidade e Qualidade hoje vigentes, por parte do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, tornando-os mais rígidos, seguida de uma fiscalização energética, fazem-se necessárias, em nome da qualidade da cachaça e da saúde de milhões de consumidores, tanto brasileiros como de outros países.

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